Percursos, trajetos, caminhos... Cruzamentos

O que leva uma pessoa ao caminho do fazer artístico? O que faz com que homens e mulheres sigam produzindo bens simbólicos e subjetivos que dialoguem com seu tempo e espaço? A resposta talvez seja... inquietação, um incômodo diante de como a realidade se revela aos sentidos humanos, mas com a sensação de que é possível contribuir com algo novo e diferente para mostrar à sociedade. E assim vão surgindo os/as artistas.

No caso do nosso webdocumentário, falamos de artistas que são formados/as dentro dos bairros do Barreiro e Jurunas, na periferia urbana de Belém. Para entendermos um pouco mais sobre suas formações, precisamos fazer um tipo de cartografia, mas não aquela somente com mapas visuais dos territórios, e sim uma que inclui no mapeamento os “movimentos, relações, jogos de poder, enfrentamentos entre forças, lutas, jogos de verdade, enunciações, modos de objetivação, de subjetivação, de estetização de si mesmo, práticas de resistência e de liberdade (PRADO FILHO, TETI, 2013, p. 47).

Ouvindo os depoimentos desses artistas, percebemos os processos de subjetividade envolvidos nas produções e objetivos de cada um/a, buscando relacionar o particular (bairro) com o universal (cidade, estado, país, mundo). Há claramente um interesse em comum de cada vez mais “ostentar” a produção artística-cultural dessas periferias, mostrando que para além da fruição e entretenimento, a Arte é um meio de disseminar discursos e formas de ver e estar no mundo, entendendo de onde são e de onde vêm. Ou seja, a formação artística dessas 6 pessoas que estamos acompanhando nos episódios deste webdocumentário está entranhada de suas vivências em comunidade, ou de seus percursos, trajetos, caminhos e cruzamentos.

Ordep, que hoje desenvolve projetos artísticos na linguagem de grafite, vai buscar na memória da infância suas primeiras influências, os quadrinhos. Na fase da juventude, foi influenciado pela música punk rock. O artista ainda afirma que “o punk influenciou muito as artes visuais nos anos 80” e que trouxe essa influência para sua forma de criar. Como muitos jovens nas periferias, Ordep agarrou as possibilidades formativas que lhe foram possíveis, passando por diversas experiências de caráter profissionalizante, como a serigrafia e pintura com pistola de tinta. Experiências que foram lhe conduzindo para o artista que viria a se tornar... Em 2007, ele passa a realmente atuar como artista visual, com uma formação autodidata que posteriormente foi complementada com a graduação no curso de Artes Visuais.

Autodidata define também o artista Awazônia. Sua jovialidade lhe possibilita a ousadia e muitas experimentações, assim como a rebeldia e a inquietude diante das desigualdades sociais. Com um olhar de criança, manteve o encantamento com as coisas peculiares, com os detalhes e as sutilezas que outros/as não veem quando passam para a vida adulta. Foi a partir desse olhar que Iago Barbosa se tornou Awazônia, ao nutrir um amor cuidadoso incondicional pelo rio São Joaquim, e sentir a necessidade de que mais pessoas tivessem o mesmo cuidado. “Eu resolvi comprar uma câmera (mesmo sem saber manusear) para fotografar o bairro onde eu moro, especialmente o rio São Joaquim”. E nos exercícios diários de registrar pessoas e lugares da periferia é que se formou o multiartista visual Awazônia, de extrema consciência social e que imprime nas suas obras o olhar encantado que nunca deixou de ter.

O compromisso social é algo que também é comum aos/às artistas desse projeto e a bailarina e coreógrafa Laura Sena é um exemplo disso. Ela sempre esteve atuante nas igrejas católicas do bairro, nos trabalhos de catequização, mas a partir do momento que recebeu formação em danças folclóricas, passou a dedicar-se a mudar a realidade local por meio da arte. Enfrentando a violência de gang que existia no bairro, ela criou o grupo Pará Caboclo em 2001, e aos poucos, ela e seu irmão, foram conquistando o objetivo que almejavam. “Para que essa guerra (de gang) acabasse, começou por meio dos projetos sociais. Depois de uns cinco anos, nós conseguimos que as crianças tivessem um trânsito livre no bairro”, conta Laura.

A cultura popular é muito intensa em Belém. E um segmento dela, que são as quadrilhas juninas, tem muita força no Jurunas. São inúmeras as quadrilhas do bairro, e uma delas é a Flor Junina, organizada pela família do Samu Periférico. Como nos conta ele próprio, sua primeira influência artística foi participar desde criança desse grupo. Além disso, assim como hoje o Pará Caboclo oportuniza o encontro com a Arte para crianças e adolescentes, o menino Samuel também teve a chance de participar de oficinas de teatro e dança, assim como de projetos sociais e esportivos. Um desses foi o projeto Emaús, quando ainda funcionava no bairro do Jurunas, também tendo como incentivador o Padre Bruno Sechi. São oportunidades que geram encontros, que direcionam para uma formação artística. Mas para nascer o poeta e rapper Samu Periférico, precisava acontecer outro encontro, que se realizou em 2016, como nos conta Samu: “Eu conheci a batalha de Rap, lá eu comecei a entender o que eles falam, o que eles pregam... Foi aí que eu comecei a fazer minhas denúncias, minhas poesias”.

A poeta e atriz Carol Magno também relata a influência da cultura popular na sua formação, citando os bois bumbás, as quadrilhas juninas, o carnaval, tudo o que sua família frequentava no Jurunas. Mas como início mesmo nas artes literárias ela aponta uma brincadeira infantil na vizinhança: “Eu produzia pequenos livros manuais e vendia por 10 centavos, 5 centavos para os meus vizinhos”. Ela já tinha sido mordida pelo bichinho da Arte literária e passou a escrever em diários, até que chegou na universidade. Ao mostrar seus escritos, foi incentivada a publicá-los em um blog, e assim o fez. Sua trajetória literária só estava iniciando, pois ela publicou também livros coletivos e um livro individual. Hoje Carol transita por outros campos artísticos, como a dança, o teatro e o audiovisual, mas sempre tendo a “palavra” como elemento principal. E é assim que ela volta às suas raízes do Jurunas para produzir textos, espetáculos e performances que dialogam com as memórias e a população do Jurunas.

O senso de coletividade que permeia as comunidades periféricas resume bem a história do Núcleo São Joaquim. Criado em 2010 para lutar por melhorias para o bairro do Barreiro, este coletivo tem a característica de usar a arte para mobilizar a população e o poder público, como fala Manoel Fonseca: “A gente juntou cultura e o ativismo social, ambiental, tudo junto”. Fazem parte do coletivo diversos/as artistas do Barreiro e bairros próximos, cada um/a com seu próprio percurso de formação, mas o que os une é a trajetória na periferia, as inquietações de transformação social e ambiental por meio da Arte. As mãos dadas na periferia têm mais força para sobreviver e transformar a realidade. Assim, o Núcleo segue mobilizando outras pessoas a se engajarem no movimento, pois como afirma Manoel: “nós não somos muitos, mas o pouco que somos, tem uma qualidade impressionante”.

Essa força de ação emerge nos bairros do Barreiro e Jurunas, assim como em outros de Belém, que estão à margem, mas não estão parados. Esses/as 6 artistas nos revelam o quanto têm de potência em suas histórias, em seus percursos e caminhos que os/as levaram às artes que produzem hoje e à forma como se ligam aos seus bairros.

Por José Arnaud

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REFERÊNCIA:
PRADO FILHO, Kleber; TETI, Marcela Montalvão. A cartografia como método para as ciências humanas e sociais. Barbarói, p. 45-59, 2013.

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