As potências e contradições das periferias

Em Belém temos 71 bairros, a maioria são considerados periféricos, e são justamente nesses que vive a maior parte da população de um milhão e meio de habitantes da cidade. Diante da grandeza territorial e populacional que as periferias ocupam em Belém, vale a pergunta: o que é periferia?

Numa visão histórica, o termo “periferia” passou a ser usado para territórios urbanos com predominância de características como pobreza, precariedade e distância em relação ao centro. No entanto, nos anos 90, houve uma reivindicação do uso desse termo pela própria população periférica, num tipo de ressignificação, de valorização, de apropriação. Assim, periferia passou a ser usado como um termo que traz junto o sentido de denúncia social, união das quebradas e a busca pela paz nos territórios, passando a enxergar esses bairros como locais de violência e pobreza, mas ressaltando outros aspectos, como solidariedade e as potências das populações (D’ANDREA, 2020).

É desse ponto de vista que partimos para a construção do nosso webdocumentário, e também da ideia que vem da periferia de que “só quem é de lá sabe o que acontece” (Racionais MC’s, 1989). Então quem melhor para nos falar dos bairros do Barreiro e Jurunas do que seus/suas moradores/as?! E nessa prosa gostosa e poderosa conhecemos mais profundamente a realidade desses territórios, suas semelhanças e diferenças.

O Jurunas, um bairro histórico da cidade, tem sua origem remontada ao período das primeiras expansões de Belém para além do seu centro comercial. A poeta Carol Magno e o grafiteiro Ordep, que trazem em suas obras as raízes desse bairro, falam das memórias históricas do local. Referindo-se à época da ocupação inicial do Jurunas, Carol narra que “as pessoas que chegavam do interior paravam ali na beira do rio, onde poderia ser um elo entre as cidades de onde elas vinham e o centro de Belém, que era a Cidade Velha, a Campina”. Ordep reforça que o bairro tem uma relação muito forte com as águas, e que na sua origem “o Jurunas era cheio de igarapés e braços de rios que davam para a Baía do Guajará... E o que hoje são ruas e passarelas, um dia já foram rios e igarapés”.

Outros conceitos primordiais para esta produção são “território” e “cidadania”, que em essência estão embricados, e é exatamente assim que surgem nas falas dos/as artistas as “mágoas” sociais que carregam como moradores da periferia. Muito foi dito sobre “marginalização”, não no sentido de infringir a lei, mas de quem está à margem da sociedade e do sistema. Esta é a narrativa criada pelos meios de produções que marginalizam os modos de vida nos territórios periféricos, apontando dedos e acuando tudo que vem dessas comunidades. Assim como questiona Manoel Fonseca, do Núcleo São Joaquim, no Barreiro: “até hoje ainda não conseguimos desmistificar essa questão da marginalização do nosso bairro. Por muito que a gente se esforce, mas sempre vai ter um que diga que o bairro é um dos mais perigosos de Belém”. Awazônia, o jovem fotógrafo Iago Barbosa, deixa uma fala que fica ecoando como um grito de denúncia: “a sociedade nos faz acreditar que a gente nasceu ao contrário, que lá não é um bom local para morar, mas é. O que falta para a gente é estrutura e... A gente foi abandonado pelo Estado”.

Essa última frase do artista nos remete ao processo de abandono e esquecimento a que estão submetidas as periferias. Samu Periférico, rapper do Jurunas, falando do racismo que a população negra e periférica sofre na sociedade, afirma que “nas novelas somos sempre representados como bandidos ou empregados dos brancos, mas a periferia não é isso. Porque nós, de periferia, temos que estar sujeitos a isso? Na periferia tem universitários, como eu, tem médicos, contadores, professores. Somos lideranças, somos artistas, podemos ser o que a gente quiser”.

E não podíamos deixar de exaltar as potências de cada bairro, as belezas e peculiaridades que são apontados por nosso/as protagonistas. As periferias se reinventam a todo instante, inventam formas de existência distintas, que é a própria “resistência” (LACAZ, LIMA, HECKERT, 2015). São redes construídas pela população local para se reafirmarem enquanto sujeitos/as e agentes de transformação em seus territórios. Laura Sena, que para seguir com seu trabalho no Grupo Parafolclórico conta com o apoio da comunidade, nos relata que “no Barreiro a gente não tem uma praça para levar nossas crianças, temos só na Sacramenta. Lá no Canal do São Joaquim fizeram um playground. Os próprios moradores que fizeram para as crianças”.

E assim fechamos nosso texto, deixando essa ideia latente de que as periferias reagem por meio dessa rede de potências e resistências, reexistindo por meio das grandes ações que nascem da e para a população local.


Autor: José Arnaud

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REFERÊNCIAS

D’ANDREA, TIARAJU. Contribuições para a definição dos ConCeitos periferia e sujeitas e sujeitos perifériCos1. Novos estudos CEBRAP, v. 39, p. 19-36, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/whJqBpqmD6Zx6BY54mMjqXQ/?lang=pt&format=pdf

LACAZ, Alessandra Speranza; LIMA, Silvana Mendes; HECKERT, Ana Lúcia Coelho. Juventudes periféricas: arte e resistências no contemporâneo. Psicologia & sociedade, v. 27, n. 1, p. 58-67, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/ZPtx5b6scnM3n57nNv9QR7M/?lang=pt

Racionais MC's. Expresso da Meia-Noite (música), 1989.

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